26 de fev. de 2014

A Clara

Clara era preta. Tão preta que quando o sol tocava a sua pele, ela brilhava num tom meio azulado meio castanho. Um dia ela perguntou aos pais por que se chamava clara, com uma pele tão escura. A mãe respondeu é porque a alma dela era clara. A Clara queria ter uma alma preta igual a ela e não entendia por que tudo bom era claro e tudo ruim era preto.
A irmã da Clara alisava o cabelo. Dizia que assim que ela tivesse idade, ia poder fazer o mesmo com aquele cabelo ruim. A Clara achava seu cabelo é muito bom, com suas tranças, pompons e fitinhas.
As bonecas da Clara eram claras. As professoras também. A Clara um dia pintou sua Barbie de caneta preta. A mãe passou dias tentando tirar a "sujeira". Ela não entendia por que a Barbie pretinha assim era suja.
A Clara cresceu e continuou ouvindo tantas coisas. Que seu nariz era grande demais, por exemplo. Veja só, um nariz que pra ela era perfeito, sempre aberto nas duas narinas, raramente gripado. Ela ouviu que seus lábios eram grossos demais. E ela que pensava que esses eram bons pra beijos! Um dia ouviu que seus quadris eram muito largos, que a sua bunda era muito grande. Que os seus dentes pareciam brancos demais com aquele tom de pele. E quando ela achava que já havia ouvido de tudo, ouviu que deveria encontrar um marido branquinho, pra clarear os filhos.
E um dia, logo a Clara, que era cheia de luz. A Clara com aquela pele chocolate, os dentes muito bem alinhados e os cabelos macios. Logo a Clara, que era assim tão linda nos seus olhos de menina, ficou insegura quando virou mulher.
Ela tentou alisar os cabelos, que queimaram. Tentou emagrecer os quadris, mas era uma questão de ossatura. Ela chegou a pensar em cirurgias pra "corrigir" o nariz.
Aí um dia ela viu uma menina correndo. Pretinha assim, que nem ela. A menina carregava uma boneca preta nos braços, as duas com os cabelos cheios de tranças e fitas. A Clara se viu nela. A Clara não se via mais nela mesma.
Então ela encarou o espelho, encarou a sociedade. A Clara permaneceu forte, entre altos e baixos. Deixou o cabelo crescer forte, pra todos os lados que quisesse. Deixou ela mesma crescer forte, mais orgulhosa.Ela esperava um dia não ser tratada como um objeto a ser analisado, consertado. Não havia nada a ser consertado.
Ela esperava um dia talvez ter uma filha e poder chamá-la sei lá, de Preta, só pra variar. Mas isso só no dia em que preto não for mais uma pessoa, mas uma cor. Assim como as Claras, Rosas e Violetas que existiam por aí.

24 de fev. de 2014

Pode, não

Pode ser que a vida seja feita de sonho e fé
E que esperar faça parte de ser feliz um dia

Pode ser também que nada seja coincidência
E que nossos nomes estejam em algum jornal do futuro assim, traçados juntos

Ah, pode ser que tudo seja apenas coincidência também
E que a gente se cruzou por um efeito intergalático, por acaso

Pode ser que a gente tenha esperanças demais
Pode ser que a gente sonhe demais

Só não pode parar de indagar, parar de imaginar
Só não pode o outro virar espelho, e a vida monótona
Num monólogo de duas pessoas dia após dia

Só não pode acabar o choro na despedida, a dor de estômago de ansiedade
Só não pode a gente ficar vazia, e a vida superficial
Num comercial de margarina mal feito

Pode ser que tudo mude
Pode ser que tudo mude da mesma forma
Só não pode mudar e não caber a gente
Escritos na mesma folha, lado a lado