26 de out. de 2013

Pro Pagamento

Alguém apareceu, deu um oi.
Chegou ali, colocou um passado em cima da mesa que nem um bloco de concreto, tacteável, visível. Mostrou como esculpir aquele bloco. Disse que dava pra mudar o material, a finalidade, aumentar a resistência dele. E no final aquele bloco ia ser um eu melhor, pronto pra ser esculpido pelo meu próximo eu do futuro. Pra ver se no final ele vira uma obra daquelas que servem por si só.
E foi embora assim, sem cara nem nome, sem cobrança nem expectativa. Como se o universo realmente sempre tivesse uma forma de se pagar. Uma vez na vida todo mundo vira ajudante sem cara, uma vez na vida todo mundo precisa ser puxado assim, involuntariamente, aleatoriamente.

17 de out. de 2013

Dicionário

Se eu pudesse me expressar
Diria que ele tem um quê
Que me faz me apaixonar de novo
Toda vez que penso nele

8 de out. de 2013

Reduzindo

Na hora de ir embora ela empacotou tudo, mandou pra cunhada. Entrou na van branca e botou o cinto. Ela se perguntava qual a necessidade do cinto de segurança quando se está indo em direção à morte. Repensou e decidiu que ela poderia colidir e matar outra pessoa. Apertou os cintos.
Ela foi passando pelo bairro. Viu a igreja onde o neto tinha sido batizado, a praça onde o filho aprendera a andar de bicicleta. Viu também a escola onde lecionou por vários anos e o posto de saúde em que levava as crianças pra vacinar.
Achava irônico que por tanto tempo criou tanta gente e agora tinha que pagar pra ser levada ao hospital. Ninguém tinha tempo pra levar a mãe pra lugar nenhum.
Ela chegou no hospital, tinha um cheiro característico que lhe dava calafrios. A médica explicava o procedimento. Ela não ouvia. Sabia que iria morrer, ela havia sonhado por três noites seguidas com aquilo.
Ela se deitou na maca, lhe enfiaram uma agulha. Ela dormiu.
No dia seguinte vieram lhe examinar, mas era só corpo. Ela era alma, ar, tinha evaporado dali que nem chuva em dia quente.
A cunhada abriu as caixas. Encontrou fotos, lembranças que ela havia guardado a vida toda. Achou aquilo tudo muito inútil e botou pra fora.
O lixeiro levou a caixa, que apodreceu no lixão até não restar nada.
Sua neta pensava que não queria sua vida apodrecendo.Nunca guardou nada, nem dinheiro. E morreu uns anos depois, atropelada por um carro, usando os únicos sapatos que lhe restavam.
Os sapatos também foram apodrecer no lixão um dia. Enquanto os corpos de ambas se decompunham.
A bisneta não gostava da ideia. Morreu muitos anos depois. E seguiu o inevitável destino de todo mundo, de voltar pra terra.

6 de out. de 2013

Do estoque de sonhos

Eram tantas caixas que ela se perguntava se a vida dela era assim mesmo, toda empacotada, setorizada.
Ela adorava acumular. Mas se assustava com quão facilmente ela poderia se desfazer daquilo tudo.
Só faltava uma pergunta e uma afirmativa. Pra encaixotar uns livros, umas mudas de roupa, e partir.
Pra aquele lugar com as árvores de fruta, da parede azul cheia de fotos, dos móveis que ela ajudara a construir.
Aquele lugar em que a vida dela não é feita de caixas, de limpeza, de rotina.
Pra cozinhar por longas horas e demorar um dia pra lavar tudo. Pra descansar na rede, ler um livro, dar um beijo.
Pro paraíso que eles tinham criado paralelamente, que ela visitava todo dia ao dormir.E ela via o sol nascer da varanda, abraçada nele, tomando um café.
Onde a única coisa que se acumulava era amor.

Ela um dia foi. E eles nunca compraram nenhuma caixa.